Racismo
e Assistência Social: um breve ensaio poético-reflexivo
Daniel Péricles
Arruda
As indagações e reflexões apresentadas neste
texto têm por finalidade contribuir para o diálogo sobre o racismo e a
assistência social sem a intenção de serem conclusivas, mas indicar pistas e
sugestões acerca do tema. É como se fosse uma poesia sem ponto final, pois,
pelo movimento das ondas e pela potência dos ventos, certamente, ainda podem ser
percorridos vários horizontes, nesse mar... Então, vamos lá!
Sem dúvida, não somente a desigualdade
social, mas também a desigualdade racial, se inserem na trama perversa de
produzir indiferenças, traumas, sofrimentos e desvantagens. A desigualdade
social – como a condição da posição do sujeito nas classes sociais e nos
territórios –, e a desigualdade racial – no sentido da distinção de
oportunidades e das construções simbólicas e dos preconceitos evidenciados a
partir dos aspectos étnico-raciais –, são diferentes, mas se articulam e se
retroalimentam.
Não
é por acaso que parte significativa das pessoas e das famílias atendidas em diversos
serviços de variadas políticas públicas e sociais, conforme as especificidades
territoriais, pertence a grupos étnico-raciais que, historicamente, sofrem
preconceitos, em especial, as mulheres negras e periféricas.
Nesse aspecto, percebe-se que conhecer a
história, a ancestralidade, a cultura, a ideologia e a cotidianidade é
importante para compreender e analisar as formas como o racismo se faz presente
em nossa sociedade e nos espaços sócio-ocupacionais.
Os dados estatísticos assim comprovam.
Basta olhar quem é a maioria ou aqueles/as que compõem o contingente
significativo, entre as crianças e os adolescentes, que estão em acolhimento
institucional; os que estão à espera de adoção; os adolescentes e jovens que
estão em cumprimento de medida socioeducativa; as pessoas que estão inseridas
no sistema prisional; aqueles/as que se encontram em situação de rua; ou que
habitam nas periferias; que são mais vitimados pela violência letal; os que
cometem suicídio; as mulheres que são acometidas pelas violências, como o
feminicídio. Mais do que dados, considerando os casos subnotificados,
percebe-se que as violências e a negação do direito não ocorrem do mesmo modo,
com o mesmo significado, volume, com a mesma frequência e intensidade para
todos os grupos sociais. Isso não significa nada para você?
É certo também que se trata de um tema
sensível, já que muitas pessoas atendidas não se reconhecem como negras, ou
apresentam dificuldades e/ou conflitos para se reconhecerem como tais. Há
também o desafio de perguntar ao outro como ele/a se entende ou se identifica
étnico-racialmente e o manejo para explicar os motivos da questão. Perguntar
pela raça/cor é uma aproximação íntima, toca internamente, por isso
requer cuidado, preparo e fundamentação. É necessário preparar o ouvido do
outro para a pergunta, ou seja, informar que, para conhecê-lo/a e tomar as
ações técnicas necessárias, bem como os devidos encaminhamentos, o/a
profissional do serviço fará algumas perguntas, e que pode ficar à vontade para
respondê-las!
Nessa lógica, não se deve banalizar ou
ignorar, mas abrir questões; refletir sobre os contextos; propor ações; e
participar das práticas antirracistas que, sem dúvida, são necessárias e
emergentes, na atualidade. Em outras palavras, é relevante que o/a profissional
indague a si próprio: Quem são as pessoas atendidas pela assistência social? O
que essa informação tem a dizer? Será que a assistência social contempla
dispositivos de atenção para a totalidade do público que dela necessita,
conforme suas especificidades? Quais motivos ou razões podem explicar o racismo
vivenciado por trabalhadores/as nos espaços sócio-ocupacionais?
Considero que todo ser humano precisa de
assistência. Todo ser humano precisa de acolhimento, reconhecimento para viver
com dignidade e condições satisfatórias para a preservação da própria vida. Assistência
no sentido amplo da palavra, quer dizer, nem toda assistência é estritamente social.
A palavra social é muito vasta, em razão disso, é relevante atentar-se
às suas particularidades. Isso parece óbvio, mas o que acontece quando o que é
simples se torna difícil?
O ser humano precisa do outro para construir
o seu eu, as suas identificações e os seus caminhos. Quero dizer que o reconhecimento
é adubo em nossa plantação humana. E ainda encontramos árvores descuidadas em
pleno solo fértil, pois não lhes permitiram usufruir das riquezas minerais, da chuva,
do sol, dos animais que procuram abrigo e alimentos para os seus filhos, ou
seja, das riquezas socialmente produzidas!
É sabido que o Brasil é mundialmente uma
das grandes potências econômicas, mas, por outro ângulo, ocupa preocupantes
posições no que se refere ao desenvolvimento humano. Isto é, um país rico, que
produz riquezas e pobrezas. Esse é um contraste de um país desigual que
empobrece parte expressiva da população e por vários motivos. E a riqueza significa
que temos também processos de enriquecimento de um pequeno grupo. Essa é uma
regra básica da hierarquização do poder, do privilégio e da
desigualdade. Só se pode ser pobre em relação a algo ou alguém!
A pobreza tem diversos níveis e expressões,
e não é somente material, habitualmente, a que mais sobressai, traduzida como expressão
da pobreza econômica. Há pobrezas em relação aos afetos, aos valores morais, aos
sentidos e às subjetividades.
Então, nessa reflexão, as pessoas são, na
verdade, empobrecidas por um sistema que promove expressivos contrastes de
direitos, deveres e modos de vida; que desvaloriza determinadas culturas em
relação às outras. Assim, as fatias do bolo não são proporcionais a todos. Na
verdade, nem sempre há fatias, às vezes, nem migalhas, mas somente o aroma do
bolo já devorado pelos glutões no banquete. É o que sobra... E, até mesmo, há
situações em que se tem o bolo inteiro, porém, poucos vão comê-lo e a maioria jamais
poderá alimentar-se e sentar-se à mesa, pois o bolo já tem “dono”.
Refiro-me àqueles/as que, por alguma
situação em suas vidas, precisam também da assistência enquanto política
pública, porque vivenciaram e/ou vivenciam situações de desamparo – visto
que só se pode ser desamparado, uma vez que foi amparado
primeiramente. Eis um elemento a ser observado –, dentre outras expressões que
comprometeram e/ou comprometem seus direitos tão fundamentais e básicos. Isso
também parece óbvio, mas o que há por detrás de um direito básico que não se
efetivou? O básico é basicamente básico, baseio!
Assistência social não é algo que se dá.
Não é algo viabilizado por merecimento, nem como brinde ou troca de favores.
Assistência social não significa assistir sem fazer nada, tampouco estar disponível
a receber o que as outras políticas não podem, não sabem, não querem, ou, como
se diz, “não dão conta”. Sendo que, em muitas vezes, não fizeram o que é de sua
responsabilidade. Em síntese, a assistência social, portanto, é um ato de
cuidado, proteção e de reivindicação da vida! Que se faz com parcerias (inter)institucionais
e comunitárias.
Nisso, penso que precisamos nos sentar e
conversar com parcimônia para sistematizar os fluxos de atenção dessa
vegetação! Para elaborar e assumir estratégias e escoar possíveis tensões. Não
será um julgamento, e sim um diálogo aberto e acolhedor, acolher a dor.
De fato, é preciso garantir dotação orçamentária,
investir em metodologias, educação permanente e refletir quando se diz que “a
rede não funciona”. Uma rede que não funciona para o pescador não alcançará o
objetivo de sua pesca. Bem, além da rede de pesca, existe a rede para descanso;
a rede do gol do jogo de futebol; a rede virtual (internet); a rede de amigos; a
rede de transporte; a rede de caça, enfim...
Outra passagem é a expressão “a rede tem
furo”. Toda rede, conforme seus objetivos, precisa de furos para apreender o
sujeito e possibilitar a respiração, visão e drenagem... Assim, furo é diferente de buraco ou rasgadura. O
significante rede é importante e sua utilização nos permite pensar no que queremos
dizer quando falamos em “rede” e “furos na rede”. São valorosas simbologias e
cada profissional representa um fio dessa rede.
É sempre recomendável também escutar o que
as pessoas e as famílias que atendemos têm a nos dizer, qual é a sua visão sobre
o atendimento e o serviço, a sua participação em espaços coletivos e públicos
para a discussão da política.
Enfim, com base nesses apontamentos,
identifica-se que a assistência social, em muitos territórios, lida com
sobreviventes geracionais do processo de escravização, quer dizer, a população
negra. E esse aspecto é relevante, pois contribui, diariamente, para um olhar
sensível e atento às estruturas e aos atravessamentos que estão em jogo no
trabalho pautado em valores antirracistas!